Sala Crisantempo – um templo do corpo
Um espaço para o corpo em movimento. Uma casa em movimento. Um fluxo constante de saber compartilhado, uma ode ao trabalho inspirador do bailarino e coreógrafo Klauss Vianna, que foi tomando corpo com a chegada dos colaboradores – dançarinos, coreógrafos e músicos – que orbitam o local. Assim nascia a Sala Crisantempo, há 20 anos, num espaço que, antes, pertenceu a uma fábrica de tecidos – e que talvez por uma vocação espacial, continua tecendo redes e conexões.
Idealizada pela bailarina Gisela Moreau e pelo músico Guga Stroeter, a Sala Crisantempo ganha nome a partir do poema concreto de Haroldo de Campos e se consolida com o passar dos anos em um reduto da dança paulistana. Um espaço precioso de trocas e aprendizado, comprometido com o bem-estar do corpo e da alma.
Não decore os passos, aprenda o caminho
No início, tratava-se de uma ideia em movimento, que aglutinou pessoas ao redor de interesses comuns – o método Klauss Vianna, em torno do qual se formou um quadro estelar de professores.
A primeira professora a chegar foi a bailarina Zélia Monteiro. “Minha história com a Crisantempo começa junto com a Sala. Quando a Gi (Gisela Moreau) pensou na sala, ela me ligou para me dizer do projeto, e que ela gostaria muito que eu viesse dar aulas aqui. Conversei, vim conhecer o espaço, achei incrível e topei”, relembra Zélia.
Segundo Zélia, desde o início, todos professores que vieram para a Crisantempo tinham bastante autonomia no desenvolvimento do seu trabalho. Havia, contudo, uma única diretriz: todos os profissionais trabalham de forma a destacar o processo de consciência do corpo e a sensibilização para a aquisição da técnica. “Técnica é um processo vivo, que é preciso atualizar. E esse pensamento permeava a atuação de todos os professores. Isso criava realmente um espaço maior para a gente trabalhar, e, também, uma troca. E isso ainda continua norteando o pensamento”, diz.
Zélia também destaca o caráter inovador na concepção do espaço. “Há 20 anos, foi um espaço muito único, porque reuniu profissionais que tinham esse pensamento de corpo, pela consciência do corpo, pela sensibilidade. Todas as técnicas eram permeadas por esse trabalho de consciência do corpo e conscientização. E isso foi uma grande novidade”, avalia.
Com a concepção da Sala, veio a necessidade de articular o quadro de professores. Peterson Costa, o Peti, como é conhecido, conta ter atuado como um catalizador nesse processo. “Na época, eu era aluno-bolsista da PUC, no curso de Comunicação das Artes do Corpo, encantado e apaixonado pelo legado de Klauss Viana, fazia aulas com todos que eu podia, dentro e fora da faculdade”, relembra. “Então, eu estava em contato com pessoas que estavam difundindo essa metodologia de prática e consciência do corpo. E dessa maneira fomos costurando esse projeto”, conta.
Neide Neves, que na época da criação da Sala era professora da PUC-SP, no curso das Artes do Corpo, e que trabalha com a Técnica Klauss Vianna desde 1982, foi uma das primeiras convidadas por Peti para compor o quadro de professores. “Começamos a reunir as pessoas que trabalhavam com a técnica Klauss Vianna em São Paulo, ou que de alguma forma vinham também do trabalho do Klauss para formar um grupo de estudos”, relembra. Esse grupo, criado na Sala Crisantempo, deu origem posteriormente ao curso de Especialização Klauss Viana na PUC-SP.
Na sequência veio Beth Bastos, que chegou trazendo técnica de dança e composição. “Na criação do espaço, fomos pensando que esse espaço pudesse oferecer aquilo que a gente estava sentindo. E como eu, a Zelia e a Neide, tínhamos toda uma formação em Klauss Viana, a gente pensou exatamente sobre isso: que seria um lugar que tivesse como prioridade o olhar e a atenção para o corpo”, diz Beth. “A técnica do Klauss é uma técnica muito democrática, que valoriza as características de cada um. Ele tinha uma máxima que nos guia: ‘não decore passos, aprenda o caminho’, e isso dá uma riqueza muito grande ao processo, explica Beth, que trabalhou diretamente com Klauss Viana em Belo Horizonte.
Na medida em que o quadro de professores se formava, o foco no corpo e na consciência corporal foi ficando cada vez mais evidente como vocação do espaço. “Há um trabalho muito sólido na Crisantempo desde o início. E, hoje, a experiência dos professores é um grande destaque. Isso, aliado à qualidade e beleza da Sala fazem do espaço algo único na cidade”, avalia a professora Mônica Monteiro, que atua na sala também desde sua criação, ministrando o curso Movimento Consciente, que busca aprimorar a percepção através de exercícios que estimulam as sensações do corpo e sua estrutura (pele, músculo e osso).
Marinês Calori viu na Sala a possibilidade de unir suas paixões. Professora, preparadora corporal e quiropraxista, ela atua na Sala desde sua criação e hoje dá aula de Técnica Klauss Vianna. “Quem me chamou foi a Neide Neves, e ela me contou do propósito da sala de reunir pessoas que tinham estado, estudado ou trabalhado com Klauss Vianna. E que pudessem essas pessoas estarem juntas no mesmo espaço, e com toda essa beleza desse espaço, não apenas a beleza física, mas também o conceito”, diz.
O teatro orgânico
No início, o Teatro Crisantempo ainda era uma ideia que ia se lapidando. A chegada do coreógrafo e cenógrafo Wilson Aguiar deu o tom que o espaço buscava: ser acessível, se movimentar. “Essa brincadeira do movimento foi eixo na construção do teatro. As paredes se movem, as arquibancadas se movem, num lego de possibilidades”, diz Aguiar, que foi também diretor técnico do espaço por sete anos e, hoje, ainda cuida do teatro, prestando consultoria para as manutenções necessárias.
No dia a dia, atualmente, o teatro fica aos cuidados do Zuza, que há quase 20 anos está no projeto. Começou aprendendo o ofício e, hoje, é o responsável por toda parte de infraestrutura do espaço – desde a manutenção até a montagem para eventos e espetáculos. “Sou um garoto que veio da Bahia, comecei aqui na Crisantempo e hoje sou responsável técnico da Sala”, conta com orgulho e carinho pelo espaço que lhe acolheu e que agora é cuidado por ele.
Brasilidade e dança afro
Abrir espaço para o estudo das danças afrobrasileiras foi uma das grandes contribuições da Crisantempo. Professores renomados e alunos puderam, juntos, se desenvolver em aulas cheias de vida – e muita cultura e musicalidade – em um espaço destinado a acolher a diversidade e dar a ela as condições para florescer.
“Eu venho com a dança afrobrasileira e começo a desenvolver aqui corpos que começaram a pensar através da dança negra, da sonoridade. Tudo começou assim, experimentando”, conta Irineu Nogueira, professor de dança afrobrasileira. As suas aulas, com dança e música ao vivo, foram uma novidade na época.
Dentre os diversos músicos que passaram pelas aulas de Irineu, um deles foi Maurício Badé. “Fui convidado para tocar nas aulas do Irineu, éramos um grupo de três a quatro músicos nessa atividade. E essa música ao vivo dava uma potência enorme às aulas”, relembra. “Era um espaço que recebia a nós, negros e periféricos e que potencializava nossa arte”, comenta. “Quando entrei na Sala, eu me vi lá. Essa sensação de pertencimento foi maravilhosa”, diz a bailarina Arlete Alves, que trabalhou e estudou na Sala.
Os fundamentos da Sala, que desde sua concepção trouxe a dança como um cenário para construção de conhecimento e cultura, foi o ponto chave na relação da professora Luciana Ramos Silva, que assumiu as aulas de dança afro com a saída do professor Irineu Nogueira. “No momento em que Irineu sai e passo a ocupar esse espaço, me vi desafiada a construir uma aula que tivesse a ver com a minha trajetória e como eu agenciava as informações. E que naquele momento tinha muito a ver com a africanidade”, conta Luciana. Foi aí que surge o “Corpo em Diáspora”, que representa a forma como Luciana organizou os conhecimentos e processos metodológicos sobre a dança. “A Sala ventilava e ventila conhecimento. A Sala é um espaço poderoso de encontros artísticos”, avalia.
“Hoje a gente vê a dança afro ocupando mais espaços, tendo mais força. Mas tudo se deve aos que vieram antes. E a Crisantempo teve um papel muito importante nisso”, comenta Janette Santiago, que foi aluna e hoje é professora do Núcleo de Dança Afro da Sala, com o curso de Experimentos Afro-Corpóreos. “Aqui podemos explorar a relação música e dança, com nossa aula sempre com música ao vivo. Temos essa riqueza aqui na sala que valoriza ainda mais o processo”, diz.
Produção em casa
Uma vez estrutura a sala de dança e o teatro pronto, a Crisantempo passou a trabalhar produções próprias e festivais. Professores e alunos relembram com carinho das primeiras produções e o frisson em torno das apresentações da época. Graças a essas vibrantes produções, o espaço recebeu o Prêmio APCA de Novos Circuitos, em 2009.
Entre as principais produções, estão Ludus (2004/2005), com coreografia de Jorge Garcia. Espetáculo de estreia do Teatro, Ludus teve como ponto de partida O Cavalo Marino, tradicional festa do interior pernambucano.
Um sucesso estrondoso e amplamente relembrado por todos que passaram pela Crisantempo, O Baile Estelar, de 2005, uniu Guga Stroeter e José Possi Neto – que antes estiveram juntos em Emoções Baratas (1988) e “Mucho Corazón”, 92).
Já em 2008, o espaço recebeu a montagem Agô – Cantos Sagrados de Brasil e Cuba, que reuni reuniu cantos para orixás do Brasil e de Cuba com arranjos jazzísticos, interpretados por Guga Stroeter, com participação da cantora cubana Liena Hernandez e do cantor alagoano Mestre Sapopemba. A montagem teve coreografia da dupla Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira.
Espetáculos musicais também animaram o espaço do teatro, trazendo à São Paulo ícones da cena internacional – nomes como Wyntom Marsalis (Wynton Marsalis at Sala Crisantempo), trompetista compositor norte-americano, e a cantora de jazz Madeleine Peyroux lotaram o teatro da sala em apresentações emocionantes.
Viés Socioambiental e engajamento político
Um dos pontos altos da trajetória da Crisantempo foi a criação do Cineclube Socioambiental. “Criamos nesse projeto um caldo socioambiental e cultural”, relembra Mônica Borba que, de 2008 a 2013, coordenou a curadora do projeto. “Foi um marco na cidade e trouxe muita informação e formação de qualidade”, diz. “Era um projeto inovador, de muita vanguarda”, completa a produtora Danila Bustamante, que era responsável por organizar as sessões no espaço.
Entre 2009 e 2014, com a movimentação no cenário político nacional, a Crisantempo passou, também, a dar espaço para manifestações políticas e serviu como base para eventos da campanha de Marina Silva à presidência e, também, para eventos que antecederam a criação do partido Rede Sustentabilidade.
O viés de responsabilidade social se amplia em 2023, com o Projeto 23+, que beneficiou jovens da periferia da cidade com bolsas nos cursos ministrados na sala.
Bem receber
Os encontros proporcionados pela Sala Crisantempo costumam render parcerias duradouras. O local, as pessoas, o ambiente, a forma como são recebidas na primeira visita. A soma de tudo faz com que o carinho entre alunos e professores sempre aumente. E, nesse contexto, as pessoas que cuidam do espaço são primordiais. O acolhimento pela equipe liderada pela Marina, que desde 2005 cuida da parte administrativa da sala, é uma marca sempre lembrada. “Foi um processo desafiador assumir a gestão do espaço. Fui aprendendo, com o tempo, e com as pessoas”, diz Marina, que também é responsável pela interface entre alunos, professores e a direção do espaço.
“Estar aqui e fazer parte desta equipe é gratificante. Cuido do café que é, na verdade, um espaço compartilhado com todos. É um café especial, que acolhe, bem no espírito da Crisantempo, relata Evanildo Gomes Honório, que faz parte do projeto desde seu início.
E mesmo quem acaba de chegar ao espaço, como a jovem Cecília, que veio há três anos do interior do Maranhão, já sente os reflexos dessa filosofia e acolhimento. “Estou aprendendo e me conectando com as pessoas daqui. Esse é um lugar que segura a gente. Um lugar onde todos se sentem confortáveis”, diz ela, que atua na recepção do público da Sala.
Residência na Sala
Com foco na experimentação e na descoberta, o Teatro da Sala Crisantempo passou a receber artistas para o Projeto de Residência Artística, iniciado com o bailarino e coreógrafo Jorge Garcia em 2006. Esse trabalho resultou no espetáculo Histórias da 1/2 Noite, cuja inspiração foram textos de Machado de Assis, como a Parasita Azul, Ernesto de Tal e Ponto de Vista. Partindo da dança contemporânea, o espetáculo foi enriquecido com outras linguagens – e a teatralidade veio à tona com a inclusão de gestuais e elementos da Capoeira de Angola e do Aikidô.
Em 2007, foi a vez dos bailarinos Ana Catarina e Ângelo Madureira que assumiram a residência espaço, aprofundando nesse período seus trabalhos de pesquisa, que resultaram na apresentação de quatro espetáculos do repertório da dupla: Clandestino, Somtir, Outras Formas e o COMO. “A gente estabeleceu aqui uma relação que dura até hoje. Estivemos aqui inúmeras vezes para fazer espetáculos, pesquisas”, relembra Ana Catarina. “O Clandestino [espetáculo] foi um marco, quando a Gisela Moreau passou a conhecer do que se tratava essa confluência, do popular e do erudito, dialogando contemporâneo. E o Clandestino aborda exatamente esse aspecto que é esse jeito de se encontrar estratégia de sobrevivência para desenvolver sua arte enquanto artista, criador independente no Brasil”, conta Ângelo. “Foi nesse momento que nos aproximamos mais da Crisantempo”, relembra.
Atualmente, a Crisantempo tem como residente a Cia. Comuns, sob direção do bailarino e coreógrafo Rubens Oliveira. “Estar na Crisantempo é um prazer enorme. Um espaço de qualidade, de criatividade”, diz Rubens que, entre as atividades da companhia no espaço, cita o recém-criado projeto de mentoria para jovens artistas e os chamados “Aulões”, voltados pra amantes da dança, que chegam a reunir 50 pessoas por edição. “Hoje a gente tem uma temporada de ensaios semanais, que se destrincha em apresentações tanto aqui quanto fora. E a nossa ideia hoje é fazer essa ramificação. A gente ensaia aqui, cria toda ramificação do trabalho dentro do teatro”, diz.
Atividades no Teatro
A inauguração do Teatro da Sala deu início a um período de grande movimentação e efervescência na Crisantempo que, além de suas próprias produções, abriu espaço também para diversas e importantes parcerias com artistas de várias partes do mundo, recebendo espetáculos e eventos. “Foram tantas coisas memoráreis na Crisantempo”, relembra a produtora cultural Andreia Guilhermina de Oliveira, que destaca, sobretudo o contínuo movimento entre as formas de expressão que passavam pelo espaço. “Esse diálogo entre todas as linguagens artísticas e o meio em que nós vivemos, isso é memorável na Crisantempo”, avalia Andreia, que foi a primeira responsável por organizar a programação da casa.
Atualmente, as atividades no teatro são capitaneadas pela produtora Alessandra Borgheti e mantém o espírito inovador em sua programação, recebendo as mais variadas atividades e parcerias. “O Teatro da Crisantempo é um espaço vivo. A gente atende perfis variados – escolas, espetáculos de danças, shows musicais e muitos projetos sociais que são acolhidos”, conta Alessandra, que está na Sala desde 2019.